domingo, 17 de outubro de 2010

A Cemiterada


Figura Simulação da Revolta da Cemiterada na Bahia

Foi no século IV que surgiu o costume de se enterrar as pessoas nas igrejas ou em volta delas. Os historiadores da morte, como Maranhão, afirmam que essa prática coincidiu com o fortalecimento do cristianismo, cuja mensagem religiosa incutiu nos católicos, não só a aceitação da idéia de que a alma precisava ser salva do inferno, mas também a de que determinados procedimentos poderiam atenuar os pecados cometidos pelos fiéis, assegurando-lhes a felicidade eterna. Por isso mesmo, ao longo de sua existência os homens e mulheres daquela época se preparavam para a morte, não só observando criteriosamente determinados preceitos, mas também fazendo parte de alguma agremiação religiosa, como irmandades, confrarias ou ordens terceiras, que eram as maiores responsáveis pela organização dos enterros. Suas ações garantiam que os despojos permaneceriam junto a um local sagrado, no caso a igreja, e as pessoas, assim, tinham certeza de que seus espíritos se manteriam sempre próximos a Deus. Essa cultura fúnebre chegou ao Brasil com os portugueses, e prevaleceu absoluta até início do século XIX.

É simples e natural fé portuguesa transplantada para cá, que irá acrescendo com os sincretismos das raças ameríndia e africana, aculturando-se com os brancos cristãos. Essa fé lusitana prima pelo seu religiosismo exteriorista, que irá ser mais acentuado aqui. A uma gente criança, na fase inicial de sua formação étnica, que ainda não passa de simples adição humana de ibéricos mais ou menos primários a negros de senzala e mais bugres da mata virgem, vai ser difícil – e em Portugal já o era! – entender uma complexa religião de dogmas e princípios morais complexas como a Igreja Católica. Ou melhor, vai ser mais difícil para o cérebro e mais fácil para os sentidos. (CARRATO, 1968:29)


Em 1801, o então Príncipe Regente de Portugal, D. João, determinou, por meio de Ordem Régia, que os cemitérios fossem construídos em terrenos fora das áreas urbanas. No entanto, essa imposição não foi obedecida, nem na metrópole, nem na colônia. Esse mesmo procedimento visando ao afastamento dos mortos para longe das cidades já vinha sendo tentado na Europa desde final do século XVII, mas também sem sucesso. Vinte e sete anos depois, em 1º de outubro de 1828, o Governo Imperial brasileiro decidiu aplicar no país a determinação da regência portuguesa, delegando às câmaras municipais o poder de construir e administrar cemitérios públicos, e também o de escolher as áreas exclusivamente reservadas ao sepultamento dos mortos, independentemente da jurisdição das igrejas. A primeira a fazê-lo foi a de Salvador, na Bahia, que, por meio de lei municipal, concedeu o monopólio dos enterros a uma companhia particular. A população, no entanto, revoltou-se com essa decisão, pois entendeu que a aplicação da medida, além de contrariar sua crença e interesses pessoais, também beneficiaria os empresários, em prejuízo das agremiações religiosas, provocando-lhes a ruína.

Segundo REIS (1991), no dia 25 de outubro de 1836 uma multidão formada por muitas pessoas saiu em passeata do centro da cidade em direção ao campo santo, levando consigo “machados, alavancas e outros ferros”. Eles eram adeptos das irmandades religiosas e simpatizantes de sua causa, e, aos gritos de “morra o cemitério”, deixaram-se dominar por fúria incontrolada. Derrubaram a maior parte do muro dianteiro do cemitério recém-inaugurado, demoliram quase toda a capela ali construída e destruíram tudo mais que encontraram pela frente.

Do terreiro, os manifestantes seguiram para a praça do Palácio (hoje praça Tomé de Sousa ou Municipal), uma caminhada de poucos minutos. Ali estavam localizados a Câmara Municipal, em cujo subsolo ficava a prisão da cidade, e o acanhado palácio do governo provincial. A praça era o centro político da cidade [...] Em frente ao palácio muitos discursos foram feitos contra a empresa, e o manifesto de 280 assinaturas, encabeçadas pela do poderoso visconde de Pirajá, além de várias petições de irmandades foram entregues ao presidente da província. (REIS, 1991:13/14)

A ocorrência de Salvador repercutiu intensamente em outras províncias, principalmente nas do Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo, onde ocorreram movimentos semelhantes, porém de menor intensidade. O resultado do inconformismo popular foi que a reforma cemiterial decretada pelo imperador acabou perdendo o impulso inicial, desacelerou-se, até cair no esquecimento das autoridades por um longo tempo. Considerando-se o histórico apresentando por esse fato, observa-se que teve início a preocupação em afastar os mortos do cotidiano dos vivos.

Bibliografia

CARRATO

REIS, João José. A Morte é uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX.
, José Ferreira. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Nacional, 1968.

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